O palhaço dos mil narizes

Crédito:  Alisson Louback

O palhaço recebe um troféu pela atuação como apresentador do melhor programa infantil da televisão. Mas o contrato proíbe que diga seu nome. Ele agradece, trajado de palhaço. Um homem calvo na plateia estranha a cena e pergunta ao amigo a seu lado: “Quem é esse aí?” O outro responde: “Não é ninguém”. A cena faz parte do longa-metragem “Bingo, o Rei das Manhãs”, dirigido por Daniel Rezende e estrelado por Vladimir Brichta no papel de Augusto Mendes, o ator que faz o palhaço Bingo. Quem viveu nos anos 1980 irá se dar conta de que o drama que transcorre na tela tem pouco de ficção.

Era uma vez um ator obscuro que ganhou fama sob a maquiagem de palhaço, mas não podia revelar a identidade. É a narrativa do mundo real (ou surreal) da televisão brasileira dos anos 1980 estrelada pelo ator Arlindo Barreto como Bozo. Aos 64 anos, Barreto faz uma ponta no filme que conta de forma ficcional a história de seus anseios e frustrações. Na única cena em que atua no filme, ri de si mesmo. Mais uma ironia em um percurso acidentado e repleto de casos curiosos e trapalhadas.

QUASE-VERDADE O palhaço Bingo (Vladimir Brichta)
é proibido de revelar que é Augusto, ex-ator de pornochanchada, alcoólatra e drogado (Crédito:João Naves)

O filme estreia nesta semana, mas causou repercussão antes mesmo de chegar aos cinemas. Barreto se disse assustado pelo modo como sua intimidade foi devassada. “Os jornalistas estão atrás de mim”, comentou com a equipe da produtora Gullane, que rodou o longa-metragem em parceria com os estúdios Warner. “O que eles querem saber ainda? Já contei tudo.”

Filho da vedete e jurada Márcia de Windsor, Barreto convive desde criança com teatro, cinema e televisão. Trabalhou em novelas e filmes, em papéis menores. Em 1984, foi o terceiro ator a assumir o posto de Bozo no SBT, depois de Wandeko Pipoca (1980-1982) e Luís Ricardo (1982-1984). Apresentou o programa – franquia americana iniciada em 1949 — até 1986, quando foi substituído. Depois dele, nove atores usaram a fantasia até o programa sair do ar, em 1991. Entre todos os Bozos, o de Arlindo Barreto foi o que colecionou o maior número de narizes, que vem arrancando e pondo ao longo dos anos, ao sabor de seus caprichos.

Apesar da relutância inicial, autorizou o uso de sua história para o roteiro, de Luiz Bolognesi. Suas estripulias já tinham sido objeto de reportagens. Ficou célebre a história do palhaço que tanto aconselhava o bom comportamento às crianças como “cheirava cocaína até o nariz sangrar” nos bastidores. Um dia fez isso diante das câmeras, fato que provocou sua demissão.

VERDADE O palhaço Bozo, vivido por Arlindo Barreto na TV entre 1984 e 1986 (Crédito:Divulgação)

Fé, amor e risos

Ele compareceu com mulher e três filhos na pré-estreia do filme, na semana passada em São Paulo. Deu declarações protocolares. Afinal, hoje atende pelo respeitável título Pastor Arlindo da Igreja Batista, além de ser professor de “marketing eclesiástico”, como informa seu site. Ele apagou do currículo o alcoólatra, promíscuo e viciado. Depois de passar por tratamentos de desintoxicação, quis seguir como palhaço. Só trocou a televisão pelo altar. Ali, nos últimos 25 anos, fantasia-se de quase-Bozo para pregar fé e caridade em cultos infantis.

E faz turnês pelo Brasil, vestido de pastor, para o público adulto. O enredo de narcisismo e redenção na São Paulo dos anos 80 encantou Daniel Rezende, quando lhe foi apresentado há seis anos.

Ele tinha experiência como assistente de diretores como Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”, 2002) e Terrence Malick (“A Árvore da Vida”, 2011), e aceitou filmar Bingo para estrear na direção.

“É uma fábula sobre um sujeito imprevisível atrás da máscara”, diz. “O palhaço do programa infantil é oposto do personagem Augusto na vida diária: apronta todas e não dá a mínima para o filho.” Segundo Rezende, Augusto e Arlindo se parecem, embora não sejam iguais. “Há situações no filme que Arlindo não viveu.” Para Vladimir Brichta, de 41 anos, é o papel mais importante da carreira. “Fiz comédia ligeira em teatro, TV e cinema, mas chegou a hora de entrar em um personagem mais complexo”, diz.

Tanto Rezende como Brichta concordam que “Bingo, o Rei das Manhãs” destoa da moda de comédias de sucesso no cinema nacional. “O brasileiro precisa do escapismo da comédia”, afirma Rezende. “Vamos ver se ele consegue se divertir com a história de um herói que também provoca lágrimas.” A exibição do filme em todo o País será o teste para verificar se Bingo – ou melhor, Bozo ­- foi realmente alguém.